Eu compreendo, ou eu acuso?
O movimento #MeToo, que surgiu como um alerta para o crime da violação sexual de mulheres, chegou a Portugal com o caso entre Cristiano Ronaldo e Kathryn Mayorga. Rapidamente dominou os media num desenvolvimento desvirtuado do propósito original, reduzindo-se à questão: Quem é a vítima deste caso? No meio dos argumentos sobre o assunto, sobressaíram duas facções: os apoiantes do “ídolo” Ronaldo, e os apoiantes da “coitada” Kathryn.
No programa ‘Prós e Contras’ da RTP1, uma discussão que deveria ter sido sobre os princípios e preconceitos referentes à violação sexual da mulher revelou-se maioritariamente numa guerra entre lados. O painel ocupou grande parte do tempo a esgrimir opiniões simplistas, confronto que só acalmou quando emergiu um inimigo comum – o Prof. Daniel Cardoso -, quando comentou que “as crianças não deviam ser obrigadas a beijar os avós”. Deduzo que essa reação inflamada tenha surgido porque também eles já se terão sentido vítimas inocentes de uma criança que lhes recusou beijinhos.
Infelizmente já perdi a conta às crianças e adultos no meu consultório que foram violadas por pessoas íntimas da família (com e sem conhecimento dos pais) e que foram obrigados a manter uma relação e a continuar a dar beijinhos aos agressores. E se fizermos um exercício de reflexão, quantos adultos conhece o leitor que não gostam de dar os ditos dois beijinhos a desconhecidos? Acha isso anormal? Eu não!
Importa contextualizar o comentário do Prof. Daniel Cardoso, do ponto de vista clínico, e que é praticamente unânime no estudo da saúde mental: as crianças não devem ser forçadas a contacto físico nas relações em que ainda não se sentem confortáveis. Não quer isto dizer que as crianças não devam ser educadas para cumprimentar as pessoas, e mesmo assim não implica necessariamente o beijar. Há um “olá”, um aperto de mão, ou qualquer outra abordagem amigável.
Certamente não é agradável sentir que uma criança rejeita um cumprimento carinhoso, mas talvez seja mais sensato um esforço para conquistar a confiança da criança do que esperar que um dos progenitores a “obriguem a ser bem-educada”!
O programa ‘Prós e Contras’, que deveria ter promovido um debate clarificador, limitou-se a ser mais um exemplo do problema inerente ao debate de assuntos sensíveis: todos falam de teorias e estatísticas com uma atitude (supostamente) neutra até ao momento em que as sensibilidades de cada um são postas em causa!
Não deixa de ser tristemente curioso observar nas redes sociais a quantidade de pessoas que, no seguimento de um programa que tinha a intenção de clarificar preconceitos sobre a violação sexual, se fizessem comentários odiosos que violam a integridade moral e a vida íntima de quem deu uma opinião da qual discordam.
Generalização, raiva e outros preconceitos não são argumentos. É necessário um esforço adicional para se conseguir um debate inteligente e consequente!
Que questões levanta o movimento #MeToo?
Um abuso sexual pode ser facilmente descrito como uma atividade sexual não desejada por uma das partes, onde o agressor usa a força, poder, chantagem ou qualquer outro meio que coloca a vítima numa posição em que não tem a possibilidade negar consentimento. A questão fica turva nas situações em que a avaliação do consentimento não é linear, porque não havendo um claro impedimento do consentimento, este pode ter sido contornado.
A essência do problema vai além do acto e assenta na personalidade das pessoas envolvidas: o que entendem como prazer, a noção que têm de limites nas relações e a forma como encaram o papel do homem e da mulher na sociedade. Estamos essencialmente a falar da falta de educação para a sexualidade e para os afetos, que tem como consequência muitos adultos que não sabem respeitar o próximo, nem a si mesmos, nem sabem que postura adotar nas relações – íntimas, sociais e profissionais.
A consciência de limites e de empatia não é inata. As crianças tendem a ser um pouco egocêntricas e se não forem educadas para compreender o lugar do outro, corre-se o risco de criar um adulto que não reconhece o valor dos outros e que nas relações adopta uma postura opressiva. Se a criança é “domesticada” para comportar-se de forma submissa a regras, então há o perigo que se torne um adulto inseguro e subjugado que não reconhece o valor da própria vontade e não sabe afirmar-se assertivamente nas relações. Estes valores são fundamentais na gestão dos afetos e da sexualidade nas relações, e para que sejam devidamente transmitidos a educação deve guiar-se por um equilíbrio entre a empatia pelas vontades da criança e pelo incutir da noção de empatia e respeito pelos outros.
Se a empatia e o respeito não forem incutidos desde a infância, teremos adultos que se comportarão com base em princípios de poder e não de afetos. Uma relação madura e saudável pressupõe duas partes que reconhecem e respeitam as diferenças, neste caso no que são as formas de cada parte viver a sua sexualidade.
O #MeToo indirectamente alerta para a representação social do papel da mulher enquanto pessoa sexual.
Se olharmos para a história, é claro identificar uma trajectória de edução da mulher como alguém que não tem direito ao prazer sexual, e que tem o dever de se submeter aos caprichos do marido. Ainda existem culturas em que a mulher não tem os mesmos direitos legais que o homem, portanto ainda vivemos num mundo em que a mulher é encarada como um ser inferior e é educada pelas famílias e pela cultura para ser submissa. Existem casos extremos como algumas culturas em que a mutilação genital é o exemplo máximo desta anulação do prazer feminino, mas nas sociedades ocidentais também se observa o mesmo problema de sexismo enraizado, com gradações diferentes.
Como é suposto analisar um episódio de violação se a própria vítima não teve consciência de que foi abusada? Poderá o leitor argumentar que toda a gente sabe quando é violada. Nada mais longe da verdade: a situação não é assim tão linear. Qualquer pessoa sabe quando está a passar por uma experiência dolorosa, mas não significa isso que a interprete a situação como injusta. Citando um caso clínico que acompanhei: “- Quando aquilo aconteceu senti muito desconforto físico, mas na altura achei que aquilo era resultado do amor que o meu pai tinha por mim. Então achei que o problema era meu e apesar de fisicamente não ter gostado, acho que lá no fundo gostei de sentir que eu era assim tão importante para ele”.
Quantas são as violações sexuais que ocorrem e não são denunciadas porque a vítima não entende o direito de o fazer? Incalculáveis!
Uma mulher que consentiu um ato sexual porque foi educada para ser “boa esposa” foi realmente violada? São inúmeros os casos que aparecem na prática clínica de mulheres (adolescentes e adultas) que recorrentemente são “convencidas” pelos companheiros a ter sexo quando não lhes apetece, mas acedem porque era o “suposto”. Pensa que isso só acontecia no tempo dos seus avós e que agora já não acontece? Engana-se redondamente!
E nestes casos, há um violador, ou a mulher é vítima da própria baixa autoestima e da educação? Possivelmente os dois. Atenção: Responsabilizar a vítima não a culpabiliza, nem legitima o agressor, mas dá-lhe a consciência da liberdade de decisão. Convém ter presente: há violadores que também foram vítimas de relações abusivas, há violadores que são simplesmente agressores. Há vítimas que são vítimas de agressores e há vítimas que são vítimas da própria baixa autoestima que lhes anulou a assertividade.
A solução para o alerta do #MeToo não está em concluir se o movimento é ótimo ou péssimo, nem quem é a vítima do caso Ronaldo-Mayorga. Temos um problema cultural onde homens e mulheres são educados para as relações com base em princípios básicos e primários. No final do programa Prós e Contras mencionou-se, e bem, que tem de haver um investimento real na educação: mas essa não pode ser baseada em conceitos das ciências exatas porque as pessoas são diferentes, pensam de maneira diferente e devem ser ensinadas a pensar e a respeitar a diferença. A educação não pode focar-se apenas nas crianças, mas também nos adultos porque eles são o exemplo para as crianças – sejam as famílias, sejam os profissionais que trabalham com crianças.
Aprofundar este processo de educação será tema para outra oportunidade, mas tenha sempre presente que é responsabilidade de todos os adultos ensinarem e procurarem aprender sobre sexualidade, afetividade e igualdade de direitos.