Personagens bizarros causam sempre algum fascínio porque cumprem uma função versátil: servem como espelho das nossas dores e saco de pancada para as nossas raivas.
Joker é isso mesmo: uma vítima e um criminoso. Mas Arthur Fleck é um esquizofrénico.
O intervalo entre Arthur e Joker é o percurso de uma vida que começa numa criança que nasce numa realidade desorganizada e hostil, passa por um adulto traumatizado sem identidade própria e termina numa personagem que o resgata do seu sofrimento. Ele não sente dor: ele é dor.
Arthur é apresentado como um homem que trabalha como palhaço, com circunstâncias de vida tristes e que convive com uma doença mental (não especificada).
A sua condição psicológica tem dois sintomas determinantes: um riso nervoso incontrolável e fantasias delirantes.
O seu riso não é apenas um mero “rir para não chorar”. Surge quando ele se encontra perante alguma situação que lhe causa desconforto emocional, não necessariamente tristeza.
Ao longo do filme percebe-se que Arthur convive, desde que se lembra, com uma auto-imagem de “defeituoso”. Cresce então a pôr em causa todos os seus sentimentos: são todos fruto da falha, não são válidos.
Não sente então legitimidade para zangar-se quando o insultam, para chorar quando o entristecem: não tem legitimidade para “sentir-se”. Só lhe resta “meter para dentro” e “aguentar” o sentimento de impotência.
O “riso” surge como uma descarga involuntária de toda a tensão que acumula e já lhe é humanamente impossível de suportar.
Os delírios, surgem como forma de criar uma realidade alternativa, fruto do sentimento de impotência para mudar a realidade insuportável que tem.
Arthur vive com a mãe, Penny. É uma senhora carinhosa, mas emocionalmente frágil.
Ela trata o filho por “Happy”, um nome carinhoso para o seu problema do riso incontrolável, dizendo-lhe que “ele nasceu para fazer os outros rir”. É uma atitude empática, mas ao mesmo tempo valida e reforça a identidade de “doente”. Uma das justificações para ter-se tornado palhaço e aspirante a comediante de stand-up é esse mesmo argumento: nasceu para fazer os outros rir. Tem um objetivo de “identidade” que não é verdadeiramente espontâneo e autónomo, é herdado, e ainda por cima ninguém lhe dá o devido valor.
Outro personagem determinante para a sua transformação é o apresentador de talk-show Murray Franklin. Arthur admira-o desde pequeno, e delira que consegue assistir ao programa ao vivo, onde tem o destaque dos holofotes e a empatia de Murray.
Penny e Murray (mesmo que em delírio) são figuras que lhe servem de consolo porque empatizam com o seu “defeito” e transmitem-lhe um sentimento de relação de confiança.
O que torna Arthur em Joker?
Acontecem três momentos determinantes para a metamorfose.
O filme inicia com Arthur a ser agredido com por um grupo de adolescentes e a ser culpado pelo chefe de estar a mentir na história que conta. Um colega oferece-lhe uma pistola para ele se defender. Arthur sente-se desconfortável com a pistola porque tem medo de a manusear e não é por natureza uma pessoa agressiva, apesar de estar a viver muitas situações revoltantes (perante as quais não se sente legitimado para defender-se).
Numa agressão posterior, em que ele estava com o seu uniforme de palhaço, num impulso pela sobrevivência Arthur usa a pistola contra os agressores. As notícias relatam um palhaço assassino, o que desencadeia um movimento social de manifestantes mascarados de palhaço que se revoltam contra o sistema.
Este é o primeiro momento de validação de Arthur: agora é reconhecido. Na verdade ele não foi reconhecido, mas o resultado de um episódio acidental serve como solução fantasiada para justificar-se que já não é irrelevante nem impotente.
Toda a revolta que acumulou durante toda a vida começa a ter espaço para surgir como ódio.
Outro momento determinante acontece quando Arthur vê na televisão o apresentador Murray Franklin gozar com o vídeo de um espetáculo de stand-up comedy que ele tentou quando foi despedido. Joker, foi o que lhe chamou. Afinal aquele homem que (delirantemente) gostava dele, era um traidor que também o ridicularizou.
Outro motivo para odiar tudo e todos.
O culminar da identidade é o momento em que descobre registos clínicos da mãe, que violentamente o confrontam com a realidade de que tinha sido enganado quanto ao seu passado. Afinal era adoptado, Penny tinha estado internada num manicómio, e foi uma mãe negligente, que o sujeitou a maus tratos inimagináveis por parte de um ex-companheiro. Afinal ela não era uma mãe “santa”, era uma mãe “demónio”. Ele quer destruir toda a dor que sente nesse momento, destruindo quem a causou: mata a mãe, que é A dor. Para ele já não há diferença entre mundo interior e mundo exterior.
Afinal ele não era o doente, ele tinha razão para todo o ódio que vinha de dentro dele!
O momento de apresentação pública da metamorfose é o momento em que ele vai efetivamente ao programa de Murray, enquanto convidado. Vai lá destruí-lo, como fez com a mãe, sarcasticamente adoptando o nome pelo qual foi gozado: Joker!
Arthur agora só conheçe o que é ódio, um sentimento que só consegue atacar e destruir, não permite reconstruir o antigo e construir o novo.
Arthur nasceu com identidade herdada de “doente”. Não teve a felicidade de conhecer a experiência de amor saudável, o sentimento que supera o sofrimento. Dos acasos da vida herdou o nome de Joker, e uma identidade improvisada de palhaço todo-poderoso capaz de mover a sociedade.
Arthur cose como uma manta de retalhos a sua nova identidade, criada não através de sentido, mas de momentos aleatórios em que sente poderoso. Involuntariamente tornou-se um agressor como aqueles que odiava. Ele não quer destruir toda a gente, apenas aqueles que o tratam mal. Infelizmente, na fantasia dele, os bons já não existem.
Joker é a “salvação” da sua esquizofrenia. É personificação do ódio: já não é irrelevante, nem impotente.
Compreender os crimes não os desculpa, mas permite lidar com as pessoas que os cometem de forma humana. Ódio não cura ódio.