You are currently viewing O dia em que descobri o mal!

O dia em que descobri o mal!

…E que ele também estava em mim!

Quando frequentei a escola primária os rapazes costumavam jogar ao “carrinhos de choque”. Para quem nunca jogou, consistia em cruzar os braços à frente do peito, como num auto-abraço, para fazer de para-choques, e andarmos aos encontrões uns nos outros. Nem me lembro se havia vencedores e vencidos, mas na altura parecia divertido e a coisa acontecia com frequência.

Num certo dia, eu que na altura era um moço de fraco arcaboiço, tive um inédito surto de força e dei um encontrão no J. que foi arrancado do chão pelos dois pés e aterrou debaixo de uma mesa. O meu momento de glória durou poucos segundos porque rapidamente me apercebi que o tinha aleijado no lábio, e uma sensação de conquista rapidamente foi substituída por uma imensa culpa que me fez concluir que eu, que sempre me tinha esforçado para ser bom rapaz, afinal era mau!

Fiquei sentado no canto da sala de recreio durante o resto do intervalo (sem as orelhas de burro!), mas a senhora contínua disse-me que sabia que eu não o tinha feito por mal, no entanto tinha de cumprir o castigo para dar o exemplo de que temos que ser cuidadosos quando brincamos.

Fiquei orgulhosamente de castigo a cumprir o meu papel, e com aquele exemplo de sensatez de um adulto aprendi que afinal não era mau, apesar de ter feito uma “mauzura” (o termo que na minha terra se utiliza quando alguém faz das suas).

Naquele momento tive um privilégio que nem toda a gente tem: fui tratado como uma pessoa boa, que fez uma asneira por inconsciência e a quem foi simplesmente explicado que devia ter cuidado. Fosse a minha sorte outra, e tivesse sido tratado como um rapaz mau, talvez tivesse crescido a acreditar nesse julgamento impaciente e provavelmente muitos momentos da minha vida teriam sido condicionados negativamente por essa experiência.

Ao caracterizar alguém como “mau” corre-se o risco de fazer um julgamento enviesado porque se parte do princípio que um comportamento específico reflete todas as características de personalidade da outra pessoa.

Passo a explicar: são poucas as ocasiões em que alguém tem um comportamento motivado puramente por más intenções, sobretudo as crianças!

Podemos olhar para a maldade como uma característica humana que se manifesta em ações motivadas por uma intenção destrutiva. Pode acontecer de várias formas e intensidades, mas o princípio é este.

No entanto, muitas das ações que se pode considerar como “más” podem resultar de falta de consciência ou de maturidade, ou simplesmente pode estar-se com dificuldade em aceitar as diferenças da outra pessoa. É um ponto simples, mas é determinante porque condiciona a forma como se reage à situação.

Quando se define alguém por alguma ação que não se aprovou está-se a fazer uma generalização e sentenciar a outra pessoa, anulando qualquer possibilidade de resolver o conflito porque se assume simplesmente que a outra pessoa não vale a pena o investimento!

No entanto, ao explicar o próprio ponto de vista ou o que causou desagrado dá-se oportunidade para que a pessoa ganhe consciência das consequências da sua ação e abre-se a possibilidade de fazer crescer a relação. Esta atitude é particularmente importante na relação com as crianças porque elas facilmente interiorizam a ideia de que são más se alguém as trata como se elas fossem de facto más, dado que não têm maturidade suficiente para relativizar a generalização que possa ter sido feita para com elas.

Ter uma atitude compreensiva não implica sujeitarmo-nos a pessoas que não se preocupam, mas passa por adotar uma postura adulta que parte do princípio da ponderação. É um exercício de maturidade que implica aceitar que não se é dono da razão, e que as diferenças entre cada pessoa são legítimas.

Não há pessoas totalmente boas, nem totalmente más: existem essencialmente pessoas diferentes e pessoas que ainda não amadureceram. Lá pelo meio, há algumas que têm muitas características de personalidade destrutivas!

Entretanto, a minha relação com o J. sobreviveu; a amizade que tínhamos era suficientemente forte e ele compreendeu que a minha “maldade” de criança foi acidental!